Há um conto de Jorge Luis Borges que
gosto imensamente: “homem da esquina rosada”. Uma cena, em particular, chama-me
muito a atenção. Para entendê-la, faz-se necessário antecipar certos
acontecimentos.
Francisco Real, o Curraleiro, saiu
das bandas do norte em busca de valentia maior que a sua em Villa de Santa Rita
e a encontra no brilho da lâmina de um desconhecido. Com o peito encharcado, o
forasteiro pediu: “Tapem meu rosto, disse devagar, quando não pôde mais. Só lhe
restava o orgulho, e não ia consentir que ficassem xeretando as caretas de sua
agonia. Alguém pôs em cima dele um chapelão preto que era de copa por demais de
alta. Morreu debaixo do chapelão, sem queixa”.
O que me espanta, amig@, é o último
pedido do morto: a elegância e a sutileza de pedir que lhe cubram o rosto. O
motivo já nos foi dito: “só lhe restava o orgulho”. Sinto que o que me
impressiona é esta consciência de se estar morrendo, a percepção total de si
mesmo na hora derradeira e, de certa forma, o sentencioso controle sobre o rito.
Lendo “Diálogos: Borges/Sabato” da
Editora Globo, organizados pelo jornalista Orlando Barone, traduzidos por Maria
Paula Gurgel Ribeiro, descubro certas especificidades sobre a cena e o conto.
Borges recolheu o argumento de um tio que presenciara o pedido de um compadrito apunhalado na barriga durante
certas eleições, na Recoleta. Diz a Sabato e a Barone que influenciado por
Chesterton, Stevenson e o cinema, escreveu “homem da esquina rosada” de forma que
tudo fosse intensamente visual.
Apraz-me a confirmação de que, mais
uma vez, a extraordinária memória de Borges tenha guardado uma história fugaz perpetuando-a
em um conto; de que a narrativa oral e as situações do cotidiano são matéria
preciosa na criação de um enredo, a ponto de se tornarem instante insubstituível
em uma obra tão literária.
“Tapem meu rosto” não é nada trivial.
E a intenção de dar ao conto impulso visual alcançou o seu intento - o conto
ganhou adaptação para o cinema e a cena destacada recebeu leve variação: o chambergo é substituído por uma echarpe.
Na concepção do diretor René Mujica, o público riria ao ver um chapéu sendo
posto na cara de um homem que está morrendo.
A solução agradou a Borges, o autor assentiu dizendo que a cena não ficou
ridícula (não assisti ao filme, mas creio que esse acordo tácito entre autor e
diretor dispensa a famosa e desgastada rinha enredo versus roteiro, livro
versus cinema).
A grande admiração que temos por
determinado escritor porque reconhecemos que sua literatura nos proporciona clarividências;
a favorável presunção de que certos detalhes na leitura de um livro são achados
preciosos que só nós atentamos; uma incerta vocação para a partilha e, sobretudo,
uma precisa resposta que Borges deu a Sabato nos diálogos recolhidos por
Barone, motivaram-me a escrever este texto.
“SABATO: Não sei, mas acho que o senhor é um escritor para escritores. O senhor
lhes proporciona um deleite que não sei se o leitor comum sente.
BORGES: No entanto, acredito que quando uma frase está bem, serve para todos.”
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